sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Pecados Capitais – Preguiça





O ônibus era insuportavelmente cheio àquela hora, mas agora faltava pouco para chegar em casa. Seus pés estavam latejando por passar tantas horas em pé entregando folhetos. Mas precisavam daquela renda extra. O dinheiro vinha sendo um grande problema desde que João, seu marido, perdera o emprego.

Madalena tentou mudar de posição, pois seus braços estavam dormentes com o peso das sacolas do mercado, mas o ônibus estava muito cheio para isso. Finalmente chegou o seu ponto, mais 15 minutos de caminhada e estaria em casa.

A primeira coisa que notou ao entrar em casa foi João dormindo a sono solto no sofá. Não que isso lhe causasse surpresa. Desde que ele saíra do emprego passava seus dias entre a cama e o sofá. Mas hoje ele tinha uma entrevia para um emprego e ela estava doida para saber como fora. Decidiu deixa-lo dormir mais um pouco enquanto arrumava as compras na cozinha.

Ao terminar de colocar no armário as poucas compras que o dinheiro que tinha recebido permitira comprar, aproveitou para preparar rapidamente o jantar. Colocou algumas latinhas de cerveja no congelador, elas foram um luxo especialmente comprado para comemorar uma boa notícia do emprego. Não tinha como ele não conseguir aquela vaga. Ele fora recomendado por seu primo Tito que garantira que a vaga tinha o nome dele.

Foi para o quarto pensando em tomar uma chuveirada rápida antes de acordá-lo. A cama estava desfeita, como sempre, mas o que a fez estancar de surpresa foi a cadeira ao canto do quarto, onde ela havia deixado a melhor roupa de João para que ele a usasse na entrevista. Ela continuava ali exatamente como a deixara pela manhã. Voltou rapidamente para a sala com o coração apertado de decepção.

— João? — Chamou ainda meio atordoada. — João? — Ele espreguiçou-se lentamente e sentou-se ao sofá com um olhar sonolento e abrindo seu característico sorriso meio apalermado que ela tanto amava.

— Oi Mamá. — Disse com aquela sua voz rouca e lenta, cheia de segurança como se o mundo inteiro devesse parar e esperar para ouvir o que ele tinha a dizer. — Já anoiteceu? Você tem percebido como o tempo tem passado rápido ultimamente? O carnaval mal acabou e logo estaremos novamente colocando os enfeites de natal.

— Pois é amor. — Disse ela com uma pontada de dúvida no coração. Ele parecia tão relaxado e alegre. — Como foi sua entrevista hoje?

— Ah, querida. Foi ótima. — Respondeu ele com um entusiasmo tão grande na voz que a fez sentir-se muito culpada pela sua desconfiança. — Pode começar a planejar nossa reforma, que as coisas vão melhorar por aqui. Quem sabe até podemos fazer um quartinho para o bebê?

A centelha de esperança em seu coração virou uma chama viva. Ele sabia o quanto ela sonhava em terem um filho. Porém aquele pedacinho desconfiado de seu cérebro não resistiu em perguntar:

— Mas a roupa que separei para você ir continua lá. — Disse já se sentindo meio tola, apesar de achar ter visto um lampejo de preocupação em seus olhos.

— Mas xodozinho, você separou a minha melhor roupa. Aquela é roupa pra casamento, pra festa chique. Não poderia ir com ela para uma simples entrevista de emprego. Não se preocupe benzinho que tudo está dando certo. — Falou sorrindo e piscando um olho para ela, o que fez seu sorriso se abrir e seu coração dar pulos como sempre. Pegando o controle da televisão, ele perguntou: — Esse cheiro é aqui? O jantar está pronto? Nem tinha percebido como estava com fome.

Antes que ela pudesse responder o telefone começou a tocar com aquela sua campainha estridente. Como João já voltara sua atenção para o programa que estava passando, ela decidiu atender na cozinha e aproveitar para levar-lhe seu jantar e quem sabe a cerveja se já estivesse gelada. Voltou para a sala cinco minutos depois, sentindo que seu mundo tinha desabado a seus pés.

— Adivinha quem era ao telefone? — Perguntou tentando aparentar uma calma que não sentia.

— Humm, sei lá amor. — Respondeu meio distraído. Mas então se voltou pra ela com aquele sorriso brincalhão na face. — Quem sabe do show do milhão? Sempre quis participar. Tenho certeza que ganharia uma bolada. Que acha querida? Eu então poderia lhe dar a vida de princesa que você tanto merece.

— Você sabe que pra participar de um desses programas você precisa se inscrever. Por acaso alguma vez você já se inscreveu? Então como poderia ser do show do milhão. — Respondeu de mau humor, sem entrar na brincadeira dele. — Foi o Tito. E por incrível que pareça ele estava perguntando por que você não foi para a entrevista hoje. — Falou em um só folego, cruzando os braços como se quisesse se proteger de sua resposta.

Após alguns segundos de silêncio, ele a puxou para o sofá, sentou-a em seu colo e abraçando-a com uma atitude protetora, então falou:

—Viu amor porque eu não queria lhe contar nada. Olha como você está? Tensa. Nervosa. Detesto te ver assim. Vou lhe dizer o que aconteceu, mas me prometa que não vai ficar triste. — Falou com aquele seu aveludado tom de voz.

Ela não sabia mais o que pensar ou sentir. Poderia ter esperança de que ele realmente fora a entrevista?

— Eu fui para a entrevista, mas o ônibus quebrou e eu não consegui chegar lá na hora marcada. Mas eu te prometo que amanhã cedo estarei ligando para o Tito e marcando uma nova entrevista. Nada está perdido. E quer saber. Eu posso conseguir um emprego muito melhor que esse. Não precisamos ficar mendigando nada para seu primo. Eu sei que ele nem gosta de mim.

Desvencilhou-se de seu abraço e levantou-se decididamente do sofá. Seu coração não mais batia descontrolado. Sentia como se ele fosse apenas uma pedra no meio de seu peito.

— Essa foi a melhor desculpa que você conseguiu inventar? Como você achou que eu poderia acreditar nisso? Não havia hora marcada. Eles estavam até agora lhe esperando lá.

— Eu me perdi. — Falou ele rapidamente.

— Chega João. Pra mim chega. Eu não acredito em mais nenhuma de suas desculpas. — Disse com firmeza. — E não vou ficar aqui esperando você me convencer que vai mudar. Você nunca vai mudar.

Andou decididamente até a porta, pegou sua bolsa e saiu apressadamente. Depois pegaria suas coisas. Mas não podia ficar nem mais um minuto naquela sala. Não podia ficar nem mais um minuto ao lado dele.

João permaneceu sentado no sofá, sem conseguir esboçar um movimento sequer. Ainda surpreso com a reação e a saída repentina dela. Não podia deixa-la ir embora. O desespero ameaçou tomar conta de seu ser. Ela era a mulher de sua vida! A que ele escolhera pra ser mãe de seus filhos! Tinha que ir atrás dela. Sabia que ela o amava. É claro que ele conseguiria reconquistá-la e fazê-la perdoá-lo.

Era exatamente isso que ele iria fazer. Exporia o quanto a amava, depois a beijaria apaixonadamente e então voltariam e fariam planos para o futuro. Era isso sim. Ele sairia por aquela porta e a traria de volta! Amanhã! Porque agora ele estava muito cansado!

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A espera de uma vida

(Pauta para o Bloinquês)


Voltar para Paris definitivamente não tinha sido a melhor de suas ideias. Sentia-se como Sabrina, fugindo para esconder um coração partido. Entretanto a Paris linda, alegre e cheia de vida de que se lembrava não estava mais lá. A realidade mostrava uma cidade triste e chuvosa, apenas uma imagem em preto e branco.

Passava seus dias em caminhadas pelas margens do Sena, ou sentada em pequenos cafés espremidos nas calçadas das estreitas e antigas ruas da cidade. Precisava decidir o que iria fazer da vida. Estava em um daqueles únicos momentos em que tudo está suspenso, em que se pode tomar qualquer caminho. O problema era que não sabia que caminho devia tomar.

Desde que Alex se fora, levara com ele tudo que lhe era mais precioso. Seu coração, sua alegria de viver, sua paixão pela música. Não conseguia nem mais olhar para o violino. Trouxera-o consigo por força do hábito, mas ele ficava encostado a um canto do quarto apenas juntando poeira.

Conhecera Alex na faculdade. Ele estava fazendo direito, mas decidira fazer um curso de teatro para melhorar sua postura e dicção. É claro que ele sempre brincava dizendo que para se tornar um bom advogado o teatro era essencial e deveria ser matéria obrigatória na grade curricular. Eram tão felizes, tão jovens e despreocupados.

Casaram-se apenas dois meses após a sua formatura. Em seu discurso ele dissera que amava sua música, que quando ela tocava o mundo ficava mais bonito. Também falou de seu sorriso, de sua alegria e de seu entusiasmo, em como o mundo se iluminava todas as vezes que ele a olhava. Nunca se sentira tão amada e especial como naquele momento.

Passaram a lua de mel em Paris. Fora um sonho, simplesmente perfeito. A primeira vez em que viram o Sena era fim de tarde e a luz do sol espalhava aquela cor amarelada em tudo que tocava. Havia um músico tocando “La Vie En Rose” em um velho sax e ela não resistira e pegara seu violino para acompanhá-lo. Enquanto isso Alex apanhou o chapéu do saxofonista e começou a passá-lo pelas pessoas que se juntavam para ouvi-los tocar, agradecendo espalhafatosamente sempre que ganhava uma moeda.

Lembrar-se desses momentos agora era insuportavelmente doloroso. Realmente não deveria ter vindo para Paris. Como poderia curar-se daquela dor se a alimentava em cada esquina por onde passava? Como poderia começar uma nova vida, se a passada ainda era tão recente, tão viva em seu coração?

Hoje fazia exatamente um mês desde que ele fora arrancado tão precipitadamente de sua vida. Ele saíra para comprar uma pizza e um pneu estourado, um carro capotado, acabara com seus dias felizes. E agora não sabia o que fazer. Não sabia nem como respirar. Tudo era tão sem sentido.

Enxugou uma única lagrima que teimava em descer por seu rosto. Ainda deveria ficar em Paris por mais alguns dias, mas quando voltasse começaria a procurar um novo emprego. Talvez até mudasse de cidade. O melhor seria apagar tudo de sua antiga vida e começar uma nova. Segurou entre as mãos o pequeno pingente da corrente, primeiro presente que recebera de Alex, e retirou-a lentamente do pescoço. Olhou-a com carinho e deixou-a em cima da mesa, em um sinal de despedida. Levantou-se rapidamente, antes que mudasse de ideia, e deu um passo para deixar o bistrô.

Ela não saberia dizer se fora o movimento rápido ao levantar-se da cadeira ou a falta de uma alimentação regular nos últimos dias que a fizeram ficar tonta. Mas antes que pudesse fazer qualquer outro movimento, tudo escureceu e ela sentiu que o chão não estava mais sob seus pés.

Acordou em uma cama de hospital, sentindo-se cansada e ainda um pouco atordoada. Era só o que faltava: ficar doente em Paris! Nesse momento entrou um médico alto e calvo e começou a falar palavras totalmente incompreensíveis. Seu francês era inútil naquela situação. Só sabia o básico para um turista se virar bem sozinho.

Percebendo que ela não compreendia saiu do quarto e deixou-a novamente sozinha, mas por poucos minutos. Voltou com um jovem médico moreno que lhe perguntou se falava inglês. Fez um gesto que indicava que compreendia um pouco sim, o que o deixou aliviado. Ele informou que fizeram alguns exames de sangue e que ela não tinha nada de grave, apenas um pouco de desnutrição. Que seria necessário que ela tomasse algumas vitaminas e evitasse atividades físicas exaustivas, principalmente devido à condição em que ela estava.

Aquelas palavras fizeram seu coração disparar. Seus olhos arregalados disseram ao jovem médico que ela não sabia de que condição ele estava falando. Ele então a informou que ela estava entre oito e dez semanas de gravidez e saiu do quarto dizendo que chamaria um obstetra para conversar com ela.

Não podia ser verdade. Ela realmente estaria grávida? Sua mente não conseguia acreditar nisso, mas seu coração já estava ganhando vida novamente, batendo como louco dentro de seu peito. As lagrimas que ela achou que tinham secado voltaram a correr por seu rosto. Olhou para o lado e para seu completo espanto, na mesinha ao lado da cama estava o seu colar com o pingente especial. Pegou-o na mão, rindo de felicidade entre as lagrimas que desciam.

Um pedaço daquele amor estava vivo e estaria sempre com ela. Achara a nova vida que estava procurando, só não sabia que seria literalmente uma nova vida dentro dela. Abraçou a barriga e começou a cantarolar uma melodia de ninar, já desejando que seu violino estivesse ali com ela.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Pecados Capitais – Ira



Ela não sabia o que alimentava aquele fogo, só que ele nunca se extinguia. Era um fogo que ardia constantemente, dia após dias, hora após hora, consumindo todo e qualquer sentimento que tentasse nascer em seu coração.

Aquela raiva sem explicações, sem motivos ou justificativas já era sua companheira há alguns meses. Ela a afastara do convívio de todos e a tinha só para si, mantendo-a prisioneira naquele cativeiro sempre em ebulição.

Já não saia de casa. Às vezes ficava dias sem dizer uma só palavra, ou sem ouvir qualquer som, apenas sentindo aquele fogo arder. Mas de alguma forma ela gostava disso.

Mas hoje era um daqueles dias em que ela teria que sair de casa. Falar com as pessoas. Sorrir! Não, sorrir era um pouco demais. Principalmente naquela data, quando o fogo ganhava forças e tomava conta de tudo.

Apesar da resistência que seu corpo fazia, forçou-se a vestir um jeans já muito largo e uma camiseta bem amassada. Colocou seus documentos no bolso da calça, pegou a chave de casa e saiu rapidamente, antes que a resistência vencesse aquela batalha.

 Abaixou a cabeça com medo de cruzar os olhos com alguém pelo caminho e dirigiu-se apressadamente ao banco. Fez tudo no automático, como fazia todos os meses. Só que dessa vez ao tentar realizar a retirada de sempre o terminal deu a seguinte mensagem: "Saldo insuficiente". Como isso poderia ocorrer? Ela tinha uma boa poupança que somada a rescisão que recebera ao sair do trabalho daria para viver confortavelmente por vários meses.

 Com a raiva já aflorando em seu rosto, dirigiu-se ao jovem gerente do banco que sorria feito um imbecil apalermado. Isso não poderia estar certo. Questionou-o sobre seu saldo.

"Senhora, não há erro" Respondeu ele após alguns instantes consultando o histórico de sua conta. "Além das retiradas mensais, há os pagamentos mensais do aluguel e das contas de água, luz e internet. O dinheiro acabou" Disse ele simplesmente como se fosse apenas uma conta de matemática que ela tinha errado.

Ela sentiu ímpetos de levantar-se e esmurrá-lo até ver o sangue espirrar de seu nariz. Mas o seu lado prático e racional, em um pequeno suspiro de vida, perguntou entre dentes: "O aluguel desse mês foi pago?" O jovem gerente já sentindo o perigo no ar, consultou rapidamente o computador e respondeu receosamente: "Não, o agendamento do pagamento foi cancelado por falta de fundos."

Contendo a ânsia de pular em seu pescoço, levantou-se ruidosamente da cadeira e saiu apressadamente do banco, mas não sem antes passar no caixa eletrônico e sacar o restante do saldo que tinha em conta.

Dirigiu-se em passos rápidos ao mercado que ficava na esquina da rua, pensando no que cortaria de sua já pequena lista de compras. Consegui descontar um pouco de sua raiva e frustração na repositora de produtos que era nova no serviço e cruzou inadvertidamente o seu caminho. 

Mas foi já na fila do caixa que se viu hipnotizada por uma grande faca de cozinha, com um fino fio de corte e um bonito cabo preto. A faca que parecia ser bem amolada e de boa qualidade também era bastante cara. O mesmo preço do único pedaço de carne que estava comprando. Não levou um segundo para se decidir. Comprou a faca.

Ao sair do mercado levava apenas duas sacolas de compras, uma em cada braço. Parou na esquina esperando o sinal fechar para atravessar a rua, quando a sacola de papel que estava em seu braço esquerdo se rompeu, jogando ao chão todo o seu conteúdo.

Fechou os olhos sentindo o fogo avivar com toda a intensidade que ele podia alcançar. Nesse momento ouviu as ensurdecedoras badaladas do sino da igreja as suas costas.

 Voltou-se lentamente abrindo os olhos vermelhos de ódio e viu os gigantescos portões da igreja como se fossem uma grande boca escancarada gargalhando dela debochadamente.

 Não pensou em mais nada. Apenas seguiu seu ódio e entrou na silenciosa igreja, agora que os sinos calaram-se. Seguiu diretamente em direção do altar, sentando-se na primeira fileira de bancos sem desviar por um minuto os olhos acusadores da grande cruz com seu Cristo de braços abertos.

Quis falar em voz alta, mas não conseguiu proferir as palavras. Então deixou seu ódio falar por ela, vindo diretamente do coração em chamas:

"Então você acha isso muito engraçado! É hilariante de fato." Começou discursando silenciosamente. "O que você quer provar? O que quer de mim?" Gritou em silêncio.

Com os olhos flamejantes de tanta dor e fúria continuou encarando aquela estátua muda "Você tirou de mim tudo que era importante. Deixou-me órfã e agora o que você quer? Quer acabar com tudo? Acabar com o que resta de mim?”.

Com essas palavras presas em sua garganta, baixou a cabeça levemente sentindo as lagrimas rolarem por ser rosto. Então percebeu que ainda segurava a sacola de mercado no braço esquerdo, e que se destacando em cima dos outros itens estava a faca que a hipnotizara tanto antes.

Deixou o pacote ao chão, retirou a faca de sua embalagem e passou o dedo levemente sentindo sua lâmina afiada. Com o coração ainda em chamas, fechou os olhos e colou a lâmina ao peito, sentindo o frio contato do metal por sobre o fino tecido da blusa que usava.

Por fim, após alguns angustiantes minutos abriu os olhos fervilhantes de dor, encarou a imagem na cruz e disse em alto e bom som:

"E agora? O que você vai fazer? Vai morrer novamente para me salvar?" Disse num tom agressivo de sarcasmo.

Assim que terminou de falar ouviu um forte ruído da grande porta da igreja se chocando com violência. Olhou para trás e viu um rapaz, que não deveria ter mais do que uns 20 anos, correndo em direção ao altar.

Ela somente percebeu que ele estava armado no momento em que ele levantou o braço direito e deu dois tiros para o alto, gritando para todos saírem da igreja se não quisessem receber o próximo tiro.

A igreja, que já estava bem vazia naquela hora do dia, ficou completamente deserta, restando apenas ela olhando-o se aproximar do altar sem esboçar nenhuma emoção que fosse. Nem medo, nem aflição, nem mesmo a ira que tanto a alimentara em todos aqueles meses.

O rapaz parou em frente a ela e a encarou com aquele olhar de ódio que ela conhecia tão bem.  Não disse nem uma palavra sequer, apenas levantou a arma e encostou-a em sua testa. Nesse momento os olhos dele se fixaram na faca esquecida entre seus seios. Então em seus olhos surgiu um brilho de compreensão e lentamente ele engatilhou a arma e começou a puxar levemente o gatilho.

Naquele exato momento, quebrando o silêncio do momento, os sinos da igreja voltaram a soar, surpreendendo-os.

Para sua completa surpresa aquele jovem desesperado apenas olhou-a bem dentro dos olhos e sem pronunciar nenhuma palavra, virou o corpo para o altar e deu dois tiros em direção da cruz e um terceiro na própria cabeça, deslizando em câmera lenta para o chão em meio ao sangue que já começava a inundar tudo ao seu redor.

Ainda em estado de choque ela saiu de trás do banco e dirigiu-se para o altar, onde a cruz encontrava-se estatelada ao chão, imóvel com seu Cristo estendido.

Ajoelhou-se ao lado da imagem e percebeu que ainda estava com a faca na mão. Olhou para Ele ali a encarando de braços abertos, pronto para recebê-la e sentiu pela primeira vez depois de muito tempo, que o fogo tinha se apagado.

Deixou a faca cair ao lado do corpo e abraçou aquela imagem, chorando e sentindo que também estava sendo abraçada e reconfortada. Percebeu nesse momento que estava novamente segura, que estava em casa.

O desespero se fora, a fúria daquele incêndio finalmente se exaurira. Agora ela poderia sentir novamente. Poderia chorar e rir. Poderia seguir em frente e construir uma nova vida e ter uma nova chance de felicidade.