sábado, 18 de fevereiro de 2012

Pecados Capitais – Ira



Ela não sabia o que alimentava aquele fogo, só que ele nunca se extinguia. Era um fogo que ardia constantemente, dia após dias, hora após hora, consumindo todo e qualquer sentimento que tentasse nascer em seu coração.

Aquela raiva sem explicações, sem motivos ou justificativas já era sua companheira há alguns meses. Ela a afastara do convívio de todos e a tinha só para si, mantendo-a prisioneira naquele cativeiro sempre em ebulição.

Já não saia de casa. Às vezes ficava dias sem dizer uma só palavra, ou sem ouvir qualquer som, apenas sentindo aquele fogo arder. Mas de alguma forma ela gostava disso.

Mas hoje era um daqueles dias em que ela teria que sair de casa. Falar com as pessoas. Sorrir! Não, sorrir era um pouco demais. Principalmente naquela data, quando o fogo ganhava forças e tomava conta de tudo.

Apesar da resistência que seu corpo fazia, forçou-se a vestir um jeans já muito largo e uma camiseta bem amassada. Colocou seus documentos no bolso da calça, pegou a chave de casa e saiu rapidamente, antes que a resistência vencesse aquela batalha.

 Abaixou a cabeça com medo de cruzar os olhos com alguém pelo caminho e dirigiu-se apressadamente ao banco. Fez tudo no automático, como fazia todos os meses. Só que dessa vez ao tentar realizar a retirada de sempre o terminal deu a seguinte mensagem: "Saldo insuficiente". Como isso poderia ocorrer? Ela tinha uma boa poupança que somada a rescisão que recebera ao sair do trabalho daria para viver confortavelmente por vários meses.

 Com a raiva já aflorando em seu rosto, dirigiu-se ao jovem gerente do banco que sorria feito um imbecil apalermado. Isso não poderia estar certo. Questionou-o sobre seu saldo.

"Senhora, não há erro" Respondeu ele após alguns instantes consultando o histórico de sua conta. "Além das retiradas mensais, há os pagamentos mensais do aluguel e das contas de água, luz e internet. O dinheiro acabou" Disse ele simplesmente como se fosse apenas uma conta de matemática que ela tinha errado.

Ela sentiu ímpetos de levantar-se e esmurrá-lo até ver o sangue espirrar de seu nariz. Mas o seu lado prático e racional, em um pequeno suspiro de vida, perguntou entre dentes: "O aluguel desse mês foi pago?" O jovem gerente já sentindo o perigo no ar, consultou rapidamente o computador e respondeu receosamente: "Não, o agendamento do pagamento foi cancelado por falta de fundos."

Contendo a ânsia de pular em seu pescoço, levantou-se ruidosamente da cadeira e saiu apressadamente do banco, mas não sem antes passar no caixa eletrônico e sacar o restante do saldo que tinha em conta.

Dirigiu-se em passos rápidos ao mercado que ficava na esquina da rua, pensando no que cortaria de sua já pequena lista de compras. Consegui descontar um pouco de sua raiva e frustração na repositora de produtos que era nova no serviço e cruzou inadvertidamente o seu caminho. 

Mas foi já na fila do caixa que se viu hipnotizada por uma grande faca de cozinha, com um fino fio de corte e um bonito cabo preto. A faca que parecia ser bem amolada e de boa qualidade também era bastante cara. O mesmo preço do único pedaço de carne que estava comprando. Não levou um segundo para se decidir. Comprou a faca.

Ao sair do mercado levava apenas duas sacolas de compras, uma em cada braço. Parou na esquina esperando o sinal fechar para atravessar a rua, quando a sacola de papel que estava em seu braço esquerdo se rompeu, jogando ao chão todo o seu conteúdo.

Fechou os olhos sentindo o fogo avivar com toda a intensidade que ele podia alcançar. Nesse momento ouviu as ensurdecedoras badaladas do sino da igreja as suas costas.

 Voltou-se lentamente abrindo os olhos vermelhos de ódio e viu os gigantescos portões da igreja como se fossem uma grande boca escancarada gargalhando dela debochadamente.

 Não pensou em mais nada. Apenas seguiu seu ódio e entrou na silenciosa igreja, agora que os sinos calaram-se. Seguiu diretamente em direção do altar, sentando-se na primeira fileira de bancos sem desviar por um minuto os olhos acusadores da grande cruz com seu Cristo de braços abertos.

Quis falar em voz alta, mas não conseguiu proferir as palavras. Então deixou seu ódio falar por ela, vindo diretamente do coração em chamas:

"Então você acha isso muito engraçado! É hilariante de fato." Começou discursando silenciosamente. "O que você quer provar? O que quer de mim?" Gritou em silêncio.

Com os olhos flamejantes de tanta dor e fúria continuou encarando aquela estátua muda "Você tirou de mim tudo que era importante. Deixou-me órfã e agora o que você quer? Quer acabar com tudo? Acabar com o que resta de mim?”.

Com essas palavras presas em sua garganta, baixou a cabeça levemente sentindo as lagrimas rolarem por ser rosto. Então percebeu que ainda segurava a sacola de mercado no braço esquerdo, e que se destacando em cima dos outros itens estava a faca que a hipnotizara tanto antes.

Deixou o pacote ao chão, retirou a faca de sua embalagem e passou o dedo levemente sentindo sua lâmina afiada. Com o coração ainda em chamas, fechou os olhos e colou a lâmina ao peito, sentindo o frio contato do metal por sobre o fino tecido da blusa que usava.

Por fim, após alguns angustiantes minutos abriu os olhos fervilhantes de dor, encarou a imagem na cruz e disse em alto e bom som:

"E agora? O que você vai fazer? Vai morrer novamente para me salvar?" Disse num tom agressivo de sarcasmo.

Assim que terminou de falar ouviu um forte ruído da grande porta da igreja se chocando com violência. Olhou para trás e viu um rapaz, que não deveria ter mais do que uns 20 anos, correndo em direção ao altar.

Ela somente percebeu que ele estava armado no momento em que ele levantou o braço direito e deu dois tiros para o alto, gritando para todos saírem da igreja se não quisessem receber o próximo tiro.

A igreja, que já estava bem vazia naquela hora do dia, ficou completamente deserta, restando apenas ela olhando-o se aproximar do altar sem esboçar nenhuma emoção que fosse. Nem medo, nem aflição, nem mesmo a ira que tanto a alimentara em todos aqueles meses.

O rapaz parou em frente a ela e a encarou com aquele olhar de ódio que ela conhecia tão bem.  Não disse nem uma palavra sequer, apenas levantou a arma e encostou-a em sua testa. Nesse momento os olhos dele se fixaram na faca esquecida entre seus seios. Então em seus olhos surgiu um brilho de compreensão e lentamente ele engatilhou a arma e começou a puxar levemente o gatilho.

Naquele exato momento, quebrando o silêncio do momento, os sinos da igreja voltaram a soar, surpreendendo-os.

Para sua completa surpresa aquele jovem desesperado apenas olhou-a bem dentro dos olhos e sem pronunciar nenhuma palavra, virou o corpo para o altar e deu dois tiros em direção da cruz e um terceiro na própria cabeça, deslizando em câmera lenta para o chão em meio ao sangue que já começava a inundar tudo ao seu redor.

Ainda em estado de choque ela saiu de trás do banco e dirigiu-se para o altar, onde a cruz encontrava-se estatelada ao chão, imóvel com seu Cristo estendido.

Ajoelhou-se ao lado da imagem e percebeu que ainda estava com a faca na mão. Olhou para Ele ali a encarando de braços abertos, pronto para recebê-la e sentiu pela primeira vez depois de muito tempo, que o fogo tinha se apagado.

Deixou a faca cair ao lado do corpo e abraçou aquela imagem, chorando e sentindo que também estava sendo abraçada e reconfortada. Percebeu nesse momento que estava novamente segura, que estava em casa.

O desespero se fora, a fúria daquele incêndio finalmente se exaurira. Agora ela poderia sentir novamente. Poderia chorar e rir. Poderia seguir em frente e construir uma nova vida e ter uma nova chance de felicidade.



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