terça-feira, 20 de março de 2012

Caminhadas

111ª Edição Musical
Tema:  Dê um passo e venha para a luz do sol 
   (Come Out Of The Shade - The Perishers)


(Pauta para o Bloínquês) 



Ana Fisher adorava aquelas caminhadas ao ar livre. A tranquilidade do cemitério lhe trazia muita paz. Se eles soubessem que era seu lugar preferido com certeza seria internada de vez em um manicômio.

Já era considerada a estranha da família. A esquisitinha como eles a chamavam em segredo. Nas festas ficavam cochichando quando ela passava. Ela sentia os olhares a seguindo. Suas roupas largas e deselegantes não combinavam com uma "Fisher". Seus cabelos rebeldes e seu rosto corado não eram aceitáveis para uma menina. Sua voz, seus desenhos, sua introspecção, ela sentia que tudo nela incomodava aquela família.

Mas não se importava com eles. Nunca precisara agradá-los. Lembrava-se de seu pai lhe falando: "O mundo tentará lhe domar, tentará podar seus ramos até que você seja igual a todos os outros. Não permita que isso aconteça. Seja sempre você mesma e você será feliz".

Lembrava-se especialmente de um natal com toda a família reunida onde ela explicara que nos tempos antigos o sobrenome era definido pela profissão que a pessoa exercia na aldeia. Portando eles eram uma família descendente de pescadores. Adorara ver a cara de sua tia franzino o nariz como se estivesse sentindo cheiro de peixe. Sua mãe rira tanto que quase caíra da cadeira.

Como sentia falta deles. Já completara um ano desde o acidente que os levara, mas a saudade não diminuía com o tempo. Começara a caminhar pelo cemitério para visitá-los, mas agora ia apenas pela caminhada mesmo. Sentia que eles não estavam ali.

Adorava desenhar as árvores, as estátuas, o riacho que cortava o cemitério. Essas eram as melhores horas do seu dia. Longe do transito do centro da cidade, os passarinhos soltavam a voz e faziam um concerto só para seus ouvidos. Chegou ao riacho e deitou-se em sua margem com preguiça de fazer qualquer coisa. Passou seu tempo apenas fazendo redemoinhos na água e ouvindo o canto dos pássaros.

Estava quase cochilando quando ouviu um barulho nas árvores atrás dela. Levantou-se assustada e perguntou:

- Quem está ai? - Apesar do silêncio ela sabia que havia alguém ali. Ela podia sentir que estava sendo observada. Sentia o pelo do seu braço se eriçando de medo. Repetiu. - Quem está ai?

- Não precisa ter medo. Não vou lhe fazer mal. - Disse uma voz forte vinda de algum ponto a sua frente.

- Quem é você? - Perguntou ainda sentindo-se ameaçada.

- Ninguém. Um amigo. – Corrigiu rapidamente a voz desconhecida.

- Então me deixe vê-lo. Dê um passo e venha para a luz do sol. - Pediu ela vendo sua silhueta na beira da mata.

Surgiu então um rapaz alto, magro, de pele bem branca. Tinha cabelos escorridos que iam até abaixo dos ombros num tom loiro amarelado e olhos tristes que estavam voltados para o chão. Ela lembrava-se dele do colégio. Era o aluno novo. Na apresentação da coordenadora ela apenas disse que ele era novo na cidade e que estava morando com um tio. Não sabia mais nada sobre ele e não se lembrava de já o ter visto conversando com alguém.

- Oi - Falou ela para quebrar o silêncio - O que você está fazendo aqui?

- Nada - Respondeu ele com a voz um pouco trêmula e ainda encarando os próprios sapatos. Ela olhou para os seus tênis sujos tentando entender o que ele estava observando.

Nesse momento ela viu um pingo de sangue escorrer pelos dedos dele e cair junto aos seus pés.

- Está ferido? - Perguntou ela andando até ele e segurando sua mão. Ele não respondeu e ela viu um pequeno corte no braço, um pouco acima de seu pulso. - Como você se cortou? - Mas antes mesmo que ela terminasse a sua pergunta ela viu o canivete bem seguro em sua outra mão.

- Porque você se cortou? - Perguntou ela sentindo que ele precisa falar. Que ele pedia silenciosamente pela ajuda dela. Tirou o canivete de sua mão delicadamente. - Não faça isso com você. O mundo já tentará nos trazer dor demais sem que a gente faça isso também.

- Você não entende. Eu quero essa dor. Eu mereço essa dor. - Disse encarando-a com um brilho nos olhos de uma ira escondida.

- E porque você iria querer algo assim?

- Não há mais nada para mim aqui. Meus pais morreram e agora sou um empecilho na vida de meu tio. Como ele costuma dizer: Um estorno que deveria ter morrido junto com eles.

- E daí? Quem se importa com o que ele diz? O que importa é o que você sente. Você acha que seus pais estariam felizes se você tivesse morrido junto com eles?

- Você não entende. - Repetiu ele desistindo de falar e baixando os olhos novamente.

- Eu entendo que você está com raiva. Entendo que está sentindo-se traído por eles. Sente raiva deles por terem ido embora e te deixado aqui. E ao mesmo tempo sente-se culpado por sentir raiva deles.

Ele levantou os olhos e a encarou surpreso.

- Eu também perdi meus pais. Eu também senti essa raiva. - Segurou sua mão e o levou até o riacho. Abaixando-se devagar o puxou para junto e começou a lavar o corte com a água cristalina do riacho. Ele sentou-se a seu lado e ficaram em silêncio por alguns minutos. Então ele perguntou:

- Qual o seu nome?

- Ana e o seu?

- Carlos.

- Olá Carlos. – Disse simplesmente sorrindo. - Você gosta de vir aqui? Eu adoro. - Começou a tagarelar sem propósito algum e os minutos foram se passando. Quando ela percebeu já era hora de voltar para casa. Levantou-se depressa tomando um susto pelo adiantado da hora.

- Preciso ir. Já é muito tarde. - E correu em direção à saída do cemitério. Mas algo a fez parar. Voltou-se então para ele e perguntou: - Nos veremos amanhã?

Ele a encarou por um segundo e então sorriu concordando.

- Claro. Aqui nesse mesmo horário. Você gosta de música?

Ela concordou com um gesto de cabeça e ele sorriu já imerso em seus próprios pensamentos.

E nessa noite ela rezou por aquele garoto tímido, pedindo que no outro dia ele estivesse lá esperando por ela.

1 comentários:

Iorgama Porcely disse...

Espero que eles consigam se encontrar de novo e que Ana e Carlos juntos consigam a cura para as feridas que existem neles.

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